sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

DO ROUBO NO MASP

Quinta-feira, 20 de dezembro de 2007. Ladrões munidos de um macaco hidráulico invadem o MASP (Museu de Arte de São Paulo) , levando duas obras: 'Lavrador de Café', de Candido Portinari, e 'Retarato de Suzanne Bloch', de Pablo Picasso. O MASP é o maior museu de arte da América Latina e seu acervo é estimado em mais de 1,5 bilhões de reais. No MASP encontram-se valiosas obras de artistas brasileiros e estrangeiros, tais como Van Gogh, Diego Velásquez, Chardin, Mategna, dentre outros.
Pablo Picasso (1881 - 1973), artista espanhol naturalizado francês, é considerado por muitos o maior artista do século XX. A obra de Picasso revolucionou a arte mundial. As duas primeiras fases da obra de Picasso são a fase azul e a fase rosa, ambas são caracterizadas por obras convencionais, sendo a primeira melancólica e a segunda mais alegre, delicada. A transição da fase azul para a fase rosa foi, provavelmente, influenciada pelo surgimento de uma mulher na vida de Picasso: Fernande Olivier. É interessante observar como a obra de Picasso mistura-se com sua vida amorosa. Em 1907 Picasso, juntamente com o pintor francês Georges Braque, criou o Cubismo, uma das principais vanguardas da pintura moderna, que se caracteriza pela decomposição da realidade em formas geométricas. Foi com o Cubismo que Picasso rompeu com a arte tradicional, mostrando uma arte que não se restringe a refletir a realidade, e sim uma arte nova na qual o artista acrescenta elementos livremente. Posteriormente, quando de seu casamento com a bailarina Olga Kolklova, ele retorna ao estilo de pintura convencional, desenvolvendo um estilo neoclássico. Após 1925 Picasso começa a experimentar novos estilos inéditos e sua obra se torna cada vez mais disforme e expressiva. No final dos anos 30, Picasso pinta sua obra-prima, Guernica, mostrando os horrores da Guerra Civil Espanhola. Após este período ele também dedica-se à escultura e gravura.
Candido Torquato Portinari (1903-1962) foi o pintor brasileiro de maior projeção internacional. Quando de seus 15 anos, Portinari deixa a fazenda em que vivia com sua família em Brodowski, interior do estado de São Paulo, e vai para o Rio de Janeiro, onde matricula-se na Escola Nacional de Belas Artes. Em 1928 ele conquistou o 'Prêmio de Viagem ao Estrangeiro'. Em 1929 e 1930 ele viajou pela Inglaterra, Itália, Espanha e fixou-se na França, em Paris. A principal linha temática de Portinari foi a questão social, que o inspirou em várias de suas obras, e marcou o rompimento com a antiga tradição da "arte pela arte". Parte de sua obra foi influenciada pelo figurativismo, que se utiliza da figura humana para retratar a realidade. Em 1932 Portinari pinta a sua obra-prima 'Café', que recebe menção honrosa numa exposição promovida pelo Insituto Carnagie (EUA). Portinari destaca-se principalmente como muralista, com obras como o painel do eixo rodoviário Rio-São Paulo, três painéis expostos no galpão brasileiro na Feira Mundial de New York, murais no edifício do Ministério da Educação e Cultura, projetado por Oscar Niemeyer, dentre outra inúmeras obras.
Conhecendo um pouco a vida e obra destes artistas, voltemos, pois, ao roubo das obras destes artistas do MASP. Há, a priori, duas possibilidades: algum colecionador contratou os bandidos para fazerem o serviço, a fim de ficar com as obras para si, ou, algum contrabandista de obras de arte contratou os bandidos para posteriormente vendê-las. Consideremos os fatos: bandidos invadem o museu exatamente na hora da troca de turno dos vigias, sem capuzes, quebram alguns vidros, sobem as escadas e roubam as obras de arte, enquanto comparsas na rua transmitem informações para os criminosos do interior do museu.
Os bandidos não foram tão estúpidos a ponto de invadir o museu numa hora qualquer, eles sabiam a hora exata de invadir. Os bandidos também não usaram capuzes, o que indica que eles não são tão espertos assim. Eles deixaram, pelo menos, um comparsa vigiando as redondezas, o que reforça a hipótese de que não são tão burros. Assim, podemos concluir que ou os bandidos têm nível de inteligência mediano para pensar nestes detalhes, ou alguém pensou estes detalhes de antemão. Descarto, a priori, a segunda hipótese pois alguém capaz de pensar nestes detalhes pensaria no detalhe dos capuzes. Porém, se o mentor intelectual deste crime conhecesse o museu a fundo, ele saberia que as câmeras não têm infravermelho, e muito menos alarme de proximidade.
Também devemos considerar que os bandidos passaram por obras de Van Gogh e Velásquez, e mesmo assim roubaram a obra de Picasso e a de Portinari. Isto reforça a idéia de que os bandidos estavam a serviço de alguém. Porém, pessoas interessadas em arte evidentemente sabem que obras de Van Gogh valem mais que obras do Portinari, o que enfraquece a hipótese de um colecionador.
Assim, não é possível levantar uma hipótese única. No entanto, quem roubou as obras encontrará dificuldades em vendê-las, visto que a Interpol e a Polícia Federal estão envolvidas nas investigações e o mercado de colecionadores de obras de arte é pequeno. Isto pode ser um agravante da situação, pois quando eles não conseguirem vender as obras, podem até danificá-las, o que será uma enorme perda cultural para a Humanidade.
Picasso e Portinari foram artistas importantes no século XX, e suas obras são valiosíssimas. Nenhuma pessoa tem o direito de privar os demais seres humanos de bens culturais tais como estas obras de artes, por isto defendo que todas as obras de arte devem ficar em museus e não em paredes de colecionadores. Preocupo-me, neste caso, qual o destino das obras roubada, pois estas podem até ser danificadas trazendo um enorme prejuízo cultural.
Espero que um dia todos estes bens culturais que são as obras de arte fiquem expostas em museus abertos ao público, sem a necessidade de câmeras de vigilância, sensores de proximidade ou vigias armados, mas não acredito que este dia chegará. Porém, eventos como estes demonstram que o precário sistema de segurança deve ser reforçado para obras de artes pois muitos estão interessados em utilizá-las apenas para seu bel-prazer. O valor da arte não está em sua beleza estética, e sim em seu significado e esta só terá valor se estiver ao alcance de todos, não apenas de alguns poucos privilegiados.



domingo, 16 de dezembro de 2007

DA CPMF, SAÚDE E ASSISTENCIALISMO


Na última quarta-feira, dia 12 de dezembro os oposicionistas, os quais doravante alcunharei anti-governistas, venceram os situacionistas, ou governistas, na votação da CPMF (Contribuição Provisória por Movimentação Financeira). Muito mais que um antagonismo de forças políticas, a votação da CPMF levantou questões importantes acerca das altíssimas taxas tributárias no Brasil e acerca dos atuais programas do Governo Federal.

A CPMF foi criada em 1993, passando a vigorar em 1994, sob o nome de IPMF (Imposto Provisório por Movimentação Financeira). Ao fim de 1994, como havia sido planejado, extinguiu-se a IPMF. Em 1996 o IPMF ressurgiu sob o nome de CPMF, que vigora desde 1997. Nesta época, a idéia era destinar as arrecadações da CPMF para a área de saúde. Em 2000 foi decidido que informações bancárias poderiam ser cruzadas com declarações de imposto de renda, a fim de identificar sonegadores. Por exemplo, se algum não-contribuinte declarou-se isento e pagou milhões na forma de CPMF, muito provavelmente ele está sonegando e deve passar pela tão temida malha fina. Com o fim da CPMF pode-se pensar que haverá mais sonegação, o que é falso. A Lei Complementar 105/2001 criou um instrumento de fiscalização que independe da CPMF.

Se a CPMF é destinada à saúde, seu fim não iria precarizar ainda mais o sistema de saúde brasileiro? Isto depende. No próximo ano não há possibilidade de Estados e Municípios perderem verbas devido ao fim da CPMF, pois o planejamento do governo feito em agosto deste ano já garantiu o investimento de 47 bilhões em saúde no próximo ano. No entanto, o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) da saúde havia previsto um investimento de 24 bilhões nesta área até 2011, o que agora me parece pouco provável.

Ontem, o ministro do Desenvolvimento Social Patrus Ananias disse que o fim da CPMF ameaça aperfeiçoamento da Bolsa Família. Esta é uma ótima notícia. A Bolsa Família, Bolsa Aquilo, Bolsa Aquilo Outro são as piores idéias que um governo pode ter para desenvolver um país por uma razão simples: assistencialismo não desenvolve países. O que o governo faz é, literalmente, dar dinheiro aos pobres por serem pobres, por terem filhos em idade escolar (Bolsa Escola), etc. É mais que óbvio que muitas famílias terão mais filhos para receber Bolsa Escola durante um certo período; mas e depois deste tempo? O Bolsa Escola é o maior programa de incentivo ao aumento populacional e à pobreza. Bolsa Escola à parte, o Bolsa Família é outra terrível idéia dos governistas para diminuir a pobreza. Dar dinheiro aos pobres é um péssimo investimento, visto que é um ato inercial: os pobres continuarão pobres mesmo com a bolsa. O que deveria ser feito é investir no crescimento do próprio país, de modo a gerar empregos para estas pessoas que hoje recebem bolsa.

Críticos diriam que incentivar o crescimento do país não trará resultados imediatos, e que as famílias mais pobres irão sofrer com a pobreza. Respondo a estes críticos dizendo que “há males que vêm para bem”. Estas famílias sofrerão sim, mas isto criará um futuro melhor para muitas outras.

A CPMF afeta diretamente as taxas de juros, e o aumento destas taxas desestimula o crescimento econômico, além de inibir investimentos (maior custo de capital), e desestimula a expansão do crédito (efeitos nocivos sobre a produtividade da economia). Além disso, não mencionei o caráter regressivo desta tributação, i.e., os pobres pagam mais com a existência desta. Mesmo um trabalhador isento do pagamento desta taxa a paga quando consome produtos e serviços (nos quais a CPMF está embutida).

O fim da CPMF, a priori, soa como uma péssima idéia para um país em desenvolvimento. Porém, a longo prazo, acontecerá uma otimização na forma que o governo utiliza o dinheiro. Aos leitores mais egoístas, que estão felizes por pagarem menos impostos, digo-lhes que haverá uma compensação da CPMF em outros impostos, porém, o montante total de tributações diminuirá. Aos leitores preocupados com a saúde, esta pode funcionar melhor que hoje com menores gasto se o governo souber utilizar o dinheiro. Aos pró-assistencialistas, os programas assistenciais dos quais vocês tanto gostam, aparentemente, continuarão existindo, apesar de que não serão “aperfeiçoados”. Por fim, aos leitores com senso crítico, lembrem-se que no caso do Brasil, o mais importante é saber como empregar o dinheiro disponível.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

PANCOMPUTACIONALISMO

Como podemos observar o mundo sendo que fazemos parte deste? Esta pergunta foi feita por Descartes no século XVII. Segundo Descartes, nosso acesso ao mundo sempre dá-se de forma indireta. Em uma de suas cartas ele declarou-se “convencido de que não é possível obter nenhum conhecimento de seu exterior exceto pela mediação das idéias que eu tenho”. Isto significa que nosso acesso ao mundo sempre é indireto. Mais tarde Immanuel Kant argumentou que os seres humanos não poderiam conhecer a realidade como ela é, mas apenas a representação mental do que consideram realidade.

Considerações filosóficas à parte, gostaria de discorrer acerca de um neologismo com o qual me deparei: “pancomputationalism”, que suponho que possa ser traduzido como “pancomputacionalismo”. Pancomputacionalismo está relacionado à idéia de que vivemos em uma realidade virtual. Se você gosta de filmes de ficção científica, provavelmente já assistiu ao filme Matrix, cuja essência está enraizada nesta hipótese. A idéia de uma realidade virtual remonta à década de 70, quando Konrad Zuse, criador da primeira linguagem computacional de auto-nível (Plankalkuel – precursora do Fortran), expôs ao mundo sua idéia. A priori esta idéia pode parecer absurda, mas não há nenhuma evidência contrária. O pancomputacionalismo prevê que todas as coisas nada mais são que programas de computador. Em outras palavras, o comportamento de todo o universo estaria sendo computado em um nível básico, tal como um autômato celular, pelo próprio universo alcunhado por Zuse de "Rechnender Raum"*(Cosmos computacional).

Compreender as implicações filosóficas do pancomputacionalismo é um problema ontológico que ainda não está bem-definido. Além disso, do ponto de vista epistemológico, não se sabe se seus componentes tais como energia, espaço e tempo, são contínuos ou discretos. Visto isto, não faz sentido aplicar nossos conhecimentos de sistemas digitais baseados em lógicas booleanas a possíveis sistemas analógicos complexos.

Se não somos capazes de observar o mundo e acessá-lo diretamente, talvez nunca saberemos se todo o cosmo é um grande programa de computador ou não. Por outro lado, adotando uma postura kantiana, poderíamos conhecer nossa representação mental do que consideramos realidade e tentar descrevê-la utilizando as ferramentas das quais dispomos atualmente.

É válido ressaltar que existe uma grande diferença entre dizer que o universo pode ser representado por sistemas computacionais, e dizer que seres inteligentes criaram uma simulação de computador e nos aprisionaram, como no caso de Matrix. A segunda hipótese é mera ficção, enquanto a primeira está relacionada à maneira como descrevemos a realidade, baseado na representação mental do que entendemos como realidade. Neste caso, a idéia do universo computacional seria apenas uma ferramenta, um modelo para descrever a realidade.

Evidentemente a idéia de vivermos em uma realidade virtual soa absurda, mas devemos lembrar que esta está relacionada à nossa concepção de realidade e aos limites de nosso conhecimento, visto que é impossível observar o universo impessoalmente pois fazemos parte deste.

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quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

TABACARIA


Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.


Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.


Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.


Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.


Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?


Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.


(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)


Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.


(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)


Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente


Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.


Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.


Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,


Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.


Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.


Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma conseqüência de estar mal disposto.


Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.


(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

Fernando Pessoa - Álvaro de Campos