sábado, 7 de abril de 2018

Réquiem das sete vuvuzelas


Da tranquilidade do meu lar, meu trabalho foi interrompido por um som ensurdecedor. Saindo do estado de foco em que me encontrava, pulei imediatamente da cadeira. Não sou religioso, e nem sequer acho que deus (sim, com 'd' minúsculo) existe (adoraria estar errado sobre isto), mas neste momento o Pai Nosso me veio à cabeça, afinal, para quem cresceu num país cristão, Pascal fora um excelente apostador. O objeto demoníaco cujo som me atormentava poderia ser a primeira trombeta do apocalipse - uma vuvuzela.

E o sol da liberadade, em raios fúlgidos, Brilhou no céu da pátria neste instante.
Foi este trecho do belíssimo hino que ouvi logo em seguida. Ora, mas quem estaria curtindo um Francisco Manuel da Silva nesta altura num sábado à noite? Me dirigi à sacada.

Eis que sou afligido pelo penetrante som da segunda vuvuzela. Pensei em mil formas de utilizar este objeto como instrumento de tortura contra quem o estava manuseando. Prefiro não expor a vocês meus pensamentos mais íntimos; mas digo que dentre outras coisas, me agradaram ideias que combinavam a vuvuzela com: fios elétricos e água, gás e fogo, cordas e caixas de som. 

Gritos de comemoração vinham das ruas, junto com a terceira trombeta. O apocalipse que João profetizara parecia se aproximar. 

Nossos bosques têm mais vida, Nossa vida no teu seio mais amores.

Mas Não Existe Amor em SP. A besta se erguia à distância e de uma cabeça ouvi gritos de "Lula na cadeia, Lula na cadeia".  Nunca pensei que a bíblia pudesse ser interpretada ao pé da letra, mas admito que João quase acertou ao dizer que no apocalipse surgiria uma besta. Ele só não previu que seriam tantas!

Sem consideração pelos vizinhos, animais e por ninguém, um espetáculo pirotécnico foi iniciado. Podia-se notar que os fogos saíam das bocas de cabeças da besta. Os cachorros da vizinhança latiam em desespero, pois afinal, animais conseguem pressentir eventos cataclísmicos antes que eles aconteçam, e o apocalipse era iminente.

Voltei ao quarto, sentei-me em frente ao computador e li a notícia que o ex-presidente Lula fora preso. Lembrei do "causo" contado pelo mineiro Carlos Drummond de Andrade em A Morte do Leiteiro: "Se era noivo, se era virgem, se era alegre, se era bom, não sei, é tarde para saber". Eu diria que é cedo pra saber -- segunda instância.  E personificando a Constituição de 1988, acredito que seu artigo quinto, inciso LVII, concordaria comigo. Mas a besta tem sete cabeças (com pouco uso) e é muito barulhenta. Também há relatos da existência de uma outra besta com 11 cabeças, mas parece que só cinco delas não são decorativas.

Mas, se ergues da justiça a clava forte, Verás que um filho teu não foge à luta

Da sacada de meu apartamento em São Paulo, após mais duas trombetas ouço o hino nacional novamente. Os fogos, as vuvuzelas, os gritos e as festinhas, tudo indicava que a Copa fora antecipada. Infelizmente, não era a Copa; a desgraça alheia foi o motivo desta comemoração. Indícios de ocultação de bens e possível envolvimento em corrupção são suficientes para trazer à luz a asquerosa natureza da elite paulistana, que ignóbel à importância do ex-presidente na vida de quem estava em situação de real miséria, se sente infeliz com a diminuição da desigualdade social. Se não for por este motivo, não consigo entender o porquê de tanto ódio. Certamente não é a corrupção, pois a mesma gente que comemora a prisão do Lula como se fosse um jogo de futebol também vota naqueles-que-não-podemos-nomear, do partido que tem governado SP há tempos.

Corrupto ou não, nada justifica o macabro espetáculo que presenciei. Um homem, inocente ou culpado, estava tendo sua liberdade tolhida. Se culpado, é no mínimo triste ver alguém que tanto fez pela população se rebaixar e se envolver em crimes como estes. Se inocente, é triste vê-lo sendo condenado injustamente. Ou talvez os dois sejam, em parte, verdade. Só não vejo motivos para tantos festejos.

Após uma acalorada discussão no Facebook, cidadãos de bem (ou seria cidadãos de bens...?) esbravejavam asneiras. Seus comentários assemelhavam-se à merda que saía da boca de uma das cabeças da besta. Pessoas supostamente inteligentes faziam questão de compartilhar no Facebook que estavam "assistindo o Lula ser preso" ou coisas do gênero.

Ante às cenas de horror que eu presenciava, o som de mais uma vuvuzela soou como a badalada de um sino. Eu contemplava o episódio perplexo, com um misto de ódio pela besta que viera trazer o apocalipse, e de tristeza por ver que o apocalipse começara muito antes, quando a voz mais alta prevaleceu sobre a voz mais sensata, quando a educação falhou em formar mentes críticas, e quando deixamos política ser tratada como futebol.

Dos filhos deste solo és mãe gentil, Pátria amada, Brasil.

"Está salva a propriedade. A noite geral prossegue,  a manhã custa a chegar", nas palavras de Drummond. Aguardando o som da sétima trombeta, me agarro ao último fio de esperança, e torço para que a manhã (outubro) chegue logo. Infelizmente, a demonstração de hoje indica que a posse do próximo presidente será marcada pelo som da última vuvuzela.