quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

ÜBERMENSCH, CAEIRO, SATORI, E O ANIVERSÁRIO DE DEZ ANOS DO BLOG

Há exatamente dez anos inaugurei este blog, Tabacaria do Zaratustra.

A postagem inicial, como não poderia deixar de ser, foi meu então poema preferido, Tabacaria, escrito por Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa). Sempre me perguntei por que dentre os heterônimos de Pessoa todos reverenciavam Alberto Caeiro como um grande mestre. Até pouco tempo atrás não conseguia compreender como Campos podia curvar-se diante do humilde pastor cujos textos não eram capazes de transcender a constatação do óbvio, cuja aparente rasura nem sequer se comparava à complexa lógica e à profundidade dos escritos de Campos. 

Em uma década muito aconteceu e o moleque que escrevera as postagens de 10 anos atrás não mais existe. Experiências verdadeiramente transformadoras mudaram minha forma de ver o mundo. A mais marcante delas aconteceu este ano e me fez perceber porque Caeiro é tido como mestre por todas as personas de Pessoa. Agora consigo apreciar a admiração demonstrada por Campos ao escrever (referindo-se a Caeiro) 
Foi durante a nossa primeira conversa. Como foi não sei, e ele disse: 'Está aqui um rapaz Ricardo Reis que há-de gostar de conhecer: ele é muito diferente de si'. E depois acrescentou, 'tudo é diferente de nós, e por isso é que tudo existe'. Esta frase, dita como se fosse um axioma da terra, seduziu-me com um abalo, como o de todas as primeiras posses, que me entrou nos alicerces da alma. Mas, ao contrário da sedução material, o efeito em mim foi de receber de repente, em todas as minhas sensações, uma virgindade que não tinha tido.

Agora estou em posição de apreciar as palavras deste mestre ao dizer
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...

E finalmente consegui compreender o quão profunda é a real simplicidade das coisas, conforme colocada por ele:

Porque o único sentido oculto das coisas
É elas não terem sentido oculto nenhum,
(...)
Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: -
As coisas não têm significação: têm existência.
As coisas são o único sentido oculto das coisas.

Eu poderia contextualizar melhor estes trechos, mas em futuros posts pretendo retomar a discussão sobre a natureza das coisas e o sentido (ou falta de sentido) da existência.
A segunda parte do nome do blog, Zaratustra, refere-se ao personagem da célebre obra Assim Falou Zaratustra, de autoria do filósofo Friedrich Nietzsche.

Nesta obra encontra-se uma das mais célebres frases de Nietzsche: "Deus está morto". Esta não deve ser interpretada literalmente, pois para Zaratustra Deus  nunca existiu. Seu real significado é o triunfo da racionalidade científica sobre a religião. A ruptura com o ethos cristão leva a uma relativização dos valores morais que deixam de ser absolutos, o que para Nietzsche leva ao niilismo.  Argumento similar fora utilizado por Hegel antes de Nietzsche, em Fenomenologia do Espírito.

O segundo ponto que julgo mais importante em Assim Falou Zaratustra é a introdução da figura do Übermensch, o 'super-homem', cujo advento marcaria a morte de Deus. Neste contexto, Zaratustra diz:

Eu vos ensino o super-homem. O homem é algo que deve ser superado. Que fizeste para superá-lo?
(...)
O super-homem, eis o real sentido da terra. Que a vossa vontade diga: que o super-homem se torne o sentido da terra. Suplico-vos, irmãos, sede fiéis à terra e não acreditais naqueles que vos falam de esperanças extraterrenas.

Zaratustra também personifica o estado de niilismo atingido após o surgimento do Übermensch, cujas ações potencialmente criariam novos valores morais para preencher o estado de nil.

Anteriormente eu descrevi minhas experiências recentes que foram genuinamente transformadoras. Parte desta foi a visita ao real estado de nil, onde constantei o vazio existencial e divaguei acerca 'sentido íntimo das coisas'  sobre o qual Caeiro escrevera. Senti como se Zaratustra tivesse narrado minha ascensão a Übermensch. Entretanto, esta fora apenas momentânea (mas não podia ser momentâneo porque não existia tempo).

Atingi o estado de satori e finalmente vim a perceber que Caeiro é deveras um mestre, que "O único sentido íntimo das coias / É elas não terem sentido íntimo nenhum." e que "os meus pensamentos são todos sensações.". Agora "Sinto meu corpo deitado na realidade, / Sei a verdade e sou feliz."

Por fim, uma década após meu primeiro post jamais conseguiria imaginar que o título deste blog, Tabacaria do Zaratustra, seria um prelúdio à transcendência que eu viria a experimentar recentemente. Visto isto, graças à observação de uma amiga acredito que é hora de reviver o blog, em seu decenário.